sábado, 19 de março de 2011

CIDADE MARAVILHOSA: A BELEZA POÉTICA ACLARANDO NOSSA PRÓPRIA TRAGÉDIA

         Após muita insistência de nossos adoráveis familiares, minha esposa e eu fomos passar o Carnaval no Rio de Janeiro, em frente à Praia de Copacabana.
         
         Tinha me esquecido de quão maravilhosa é a cidade do Rio de Janeiro, fonte cristalina de belezas naturais e pura poesia.

            Durante nossa estadia, entre almoços, jantares e passeios, me lembrei diversas vezes de um profundo texto do escritor Nelson Rodrigues, texto este elaborado no início de sua carreira, quando contava com 17 (dezessete) anos de idade, publicado no jornal “A Manhã” em 07 de fevereiro de 1928.

            Com inabalável ordem de certeza, penso que a inspiração de Nelson Rodrigues para a feitura do texto foram as belas pedras que cercam a cidade maravilhosa, sobretudo o morro da Urca, início e fim de todo encantamento.

Sem rodeios, segue a íntegra de uma das melhores crônicas de Nelson Rodrigues, obra prima investigativa da alma humana.

É sempre hora de revermos nossas posturas.

Cordialmente,

Vitor Lemes Castro



A TRAGÉDIA DA PEDRA...

            Vai para quatro meses. Fora à praça Mauá, receber um velho amigo que chegava duma larga estadia na Europa. Minha carcaça aproou no cais, com meia hora de antecedência. Para matar a monotonia da espera, dispus-me a andar ao longo do paredão, onde ondas anêmicas vinham quebrar-se, com um ruído seco. Dei o primeiro, o segundo e talvez o terceiro passo. Ia dar o quarto, quando uma voz me deteve:
            - Pode dar-me o seu fogo?
            Voltei-me. Era um sujeito magro, esguio, de aparência miserável, avançava para mim, cambaleando.
            Estendi-lhe uma caixa de fósforos.
            Ele ascendeu a ponta do cigarro, que chupava, e ficou alguns instantes olhando a fumaça azul, que ascendia nos movimentos caprichosos, volúveis, coleantes, dum vôo incorreto e arbitrário. Depois, entregou-me os fósforos, agradeceu-me com a mão e preparou-se para ir embora. Creio não errar afirmando que o homenzinho chegou a afastar-se de mim uns dez passos. Chegado, porém, a essa distância, parou, hesitou alguns momentos, e, finalmente, decidindo-se gritou:
            - O senhor conhece?
            - Quem? – indaguei surpreendido.
            - A tragédia íntima da pedra?
            Como eu fizesse não, com a cabeça, ele aproximou-se e, numa risadinha nervosa, começou:
            - Eu já o esperava. Quase ninguém conhece. Só algumas organizações muito especiais podem compreendê-la.
            Só aqueles, como eu, que renegam tudo na vida e no mundo para entregar-se aos encantos ignorados duma vida exclusiva de contemplação.
            O senhor vive, com certeza, dominado pela mesma preocupação obcecante que domina, neste momento, o mundo inteiro: a preocupação do dinheiro. O homem moderno não se extasia mais com o radioso espetáculo duma manhã nascente, com o magnífico cenário de um fim de tarde, com a imponência maravilhosa duma grande montanha cujos picos, levados por uma ânsia insopitada de dominar o próprio infinito, parecem chocar com o azul maravilhoso dos céus que nos cobrem. Nem o extasia a serenidade grandiosa duma noite de cristal, nem a beleza gigantesca duma tempestade. O mar, essa inconstante esmeralda, sempre pronto a vibrar no conflito de vagas colossais, em cujas cristas raios explodem como imprecações de Deus, e a se estender, sereno e manso, em imóveis lençóis azuis, o mar, com seus doces e terríveis mistérios, com a sedução, com seus encantos ignorados, o mar, não lhes prende a atenção obcecada por interesses materiais. O homem moderno vive exclusivamente para o dinheiro. Todos os seus passos, as suas idéias, os seus gestos, suas atitudes têm infalivelmente, matematicamente, como objetivo a ânsia irreprimível de alargas suas posses financeiras. Não importa que não ganhe com isso a felicidade. Aliás, ele bem o sabe. Sabe que cada vez mais se distancia dela. Mas domina-o a nevrose do século, que é ganhar mais dinheiro e arranjar mais dinheiro. Essa ânsia universal já fez sentir seus efeitos. Desapareceram do mundo os heróis, os desinteressados, os bons, os apóstolos de idéias e de ideais. Quem tenha, hoje, um gesto que de relance pareça ou bom, ou nobre, ou desinteressado, ou heróico, está com vistas num interesse próprio, oculto, mas real. O deputado que se bate nos congressos pelo bem-estar e a felicidade e a comodidade do povo, o deputado que, na tribuna, com semblante convulso e largos gestos, convoca aos tiranos ao respeito pela autonomia, pelos direitos do povo vilipendiado, o deputado está com vistas na reeleição, que não roubará o subsídio opíparo e que manterá o seu prestígio, a sua importância na sociedade.
            O orador galhardo e cavalheiresco, que às praças públicas e maltrata com voz tonitruante, numa oração cheia de imagens e de cores rebrilhantes, o governo de prepotentes, o orador está pensando, enquanto expectora a linda fraseologia, na importância, na autoridade que terá junto às massas, o que importará numa cadeira de deputado dada pela soberania popular, ou numa magnífica espórtula oferecida pelo governo, temente da influência de sua vontade no seio do povo.
            Assim são todos. Todos só agem e se locomovem pelos interesses particulares.
            Mas, eu perguntei ao senhor se conhecia a tragédia íntima da pedra. Levado inesgotável de minha língua, ia deixando de parte o objeto de minha pergunta. O senhor, pelo que me disse, ignora o tormento da pedra. Não me admira essa ignorância. Quase ninguém a conhece. Ela só pode ser vista e compreendida por certas organizações muito especiais, organizações que no nosso tempo, perfeitamente, ser inculcadas de retardatárias. De fato, elas não passam de retardatárias. Em vez de aderirem ao vagalhão que leva a humanidade toda à conquista de mais e mais dinheiro, elas preferem ficar isoladas, fugidas, estranhas à psicologia universal. Um homem que se preocupa neste tempo com a natureza e suas belezas, um homem que vive numa vida contemplativa é apontado como louco, como idiota, como malandro. Mas, também ele tem como recompensa do escárnio, das inventivas de todos, os tesouros, as maravilhas, os encantos que ninguém vê e ele vê, os encantos que a natureza oferece ao deslumbramento dos que vivem só para ela e sua magnificência. É o que acontece comigo. Sou apontado como um louco, como idiota, riem-se de mim. Mal sabem eles que me rio deles e com mais ardor e mais razão. Enquanto eles se matam e se devoram mutuamente, eu vivo feliz, livre, contente. Veja esse exemplo: um rico e conceituado negociante da nossa praça olha uma montanha.
            O que vê? Uma montanha e nada mais.
            Eu olho essa mesma montanha. O que vejo? Uma montanha e mais: uma montanha e toda a alma da pedra, tecido por tecido, fibra por fibra, toda alma da pedra, essa alma que é tão humana ou mais humana do que a alma humana.
Vejo a montanha e toda a tragédia da pedra em seus lances de magnífica dramaticidade, em suas situações de estupenda emotividade. Em todos os dramas, melodramas, em todas as sangrentas tragédias da literatura de fascículos, não há uma tão terrível e impressionante como a da pedra. Basta olhar a estrutura colossal duma montanha, atentar nos seus talhos, nos seus sulcos, para aprender, na sua brutalidade, todo o drama.
Quando amanhece e o sol inunda na sua luz cromática um dos gigantes de granito, pasma-me que ninguém veja e compreenda a sua desgraça. É nessa hora que os sulcos profundos, os talhos, as rugas que lhe conturbam a euritmia dos traços, e são sinais de sofrimento cruciantes, nessa hora, todos eles aparecem numa evidência brutal. Basta olhá-los para se compreender que não são como dizem, simples acidentes geológicos, mas o índice duma existência atormentada e impiedosa, retalhada de angústias, de amarguras, de sofrimentos. De noite, quando as montanhas não são mais do que uma avalanche de trevas rolando pelos horizontes e poluindo a claridade de cristal do céu, eu galgo os cimos e lá do alto, com os ouvidos na alma da pedra, sinto-lhe todos os anseios, as vibrações, e minha compreensão de sua tragédia ganha mais intensidade. Parece-me que sua vida perpassa ante meus olhos, desde os primeiros passos. O sofrimento do começo manchou sua alegria de rainha, tendo aos pés o mundo e dominado o mundo, foi um ultraje feito ao seu prestígio e ao seu valor.
            Querendo um dia encostar os píncaros no azul do céu, precipitou-se num vôo de águia.
            Mais, em meio, o remígio foi retido violentamente.
            Teve consciência de sua fraqueza. Esse desastre retalhou o arcabouço liso e limpo de erosões, chanfros, reentrâncias.
            E, assim, se iniciou a formidável tragédia de sua vida.
            Mas, o amigo impacienta-se com essa história. Na verdade, tem razão. Quem se interessará pelo drama mudo, incompreendido e incomensurável da pedra? Ninguém! Portanto, agradecendo-lhe os fósforos, tiro-lhe o chapéu e dou o fora...

Um comentário:

  1. Oi, Vitor!
    Legal o texto. Conheci a Tragédia da Pedra por vc., na época da faculdade.

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